#EP40: “A nossa escola pública vai rebentar”

Com uma presença vasta no contexto da Educação, Carlos Ceia, refletiu sobre o estado do Ensino em Portugal. Entre temáticas como o currículo, a formação de professores e o uso da tecnologia nas escolas, o nosso convidado acredita que “a nossa escola pública vai rebentar”.

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 #EP40: “A nossa escola pública vai rebentar”
Fígura de ondas técnologicas azul

O episódio 40º do Podcast Isto Não é Pera Doce tem como convidado Carlos Ceia. Fundador e diretor do Instituto de Línguas da Universidade Nova de Lisboa, é professor catedrático de estudos ingleses na Faculdade das Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é titular da Cátedra: CIPSH Chair on Digital Humanities in Education. É dirctor do Center for English, Translation and Anglo-Portuguese Studie e coordenador do E-Dicionário de Termos Literários.

Com uma presença vasta no contexto da Educação, Carlos Ceia, refletiu sobre o estado do Ensino em Portugal. Entre temáticas como o currículo, a formação de professores e o uso da tecnologia nas escolas, o nosso convidado acredita que “a nossa escola pública vai rebentar”. Saiba porquê, ouvindo a conversa na íntegra: 

«Correu tudo bem até ao dia em que o atual governo decidiu que o currículo essencial se transformava em currículo único e em currículo principal»

Não é surpresa quando se fala que uma escola trabalha para resultados. Aliás, uma escola, e qualquer entidade laboral. Os resultados ditam um caminho a seguir, mas será que espelham todo o contexto de trabalho? A verdade, é que as taxas de sucesso são importantes para o reconhecimento das Instituições Educativas, colocando-as em rankings e na lista de consideração dos pais na altura das matrículas. 

A questão que se coloca é: será que a obsessão por taxas de sucesso leva a estarmos dispostos a tudo, inclusive facilitar todo o nosso sistema de ensino? Para o professor Carlos Ceia, do ponto de vista político sim. 

Do ponto de vista político, sim. Não tenho a mais pequena dúvida que, certas políticas que nós tivemos até hoje foram muito orientadas nesse sentido para, às vezes, de qualquer forma, chegar ao sucesso, sem medir bem as consequências de algumas medidas que tendiam sempre a ir nessa direção de querermos ficar bem nas estatísticas europeias, mundiais, a todo o custo.

Nenhum país dispensa o sucesso escolar. Ninguém constrói qualquer política sem pensar no sucesso escolar. É certo. Mas, de que forma se alcança o mesmo? Nas palavras do nosso convidado, algumas medidas adotadas em Portugal apontam para o facilitismo. 

E o que nós temos optado de facto por algumas medidas, sobretudo na questão da avaliação, no ensino básico e secundário, também nas questões do currículo, temos apostado em algumas medidas que apontam exatamente no sentido de facilitar, facilitar, facilitar o caminho e nós às vezes, nós que trabalhamos em educação, sabemos muito bem que facilitar o caminho não é mostrar o caminho, nem apontar o caminho.

E, a este nível, na Educação, a atenção foca-se no currículo. Isto, porque a adoção de um currículo único tem feito com que a aposta seja na preparação das pessoas motivadas a ensinar esse currículo. Mas, sem existir um reforço nas aprendizagens. 

Infelizmente, não tenho a mais pequena dúvida, que nos próximos exames internacionais, […] vamos cair a pique. Porque, aquilo que fizemos nos últimos anos nunca foi no sentido de reforçarmos verdadeiramente as nossas aprendizagens, mas termos um ensino sólido, termos um currículo sólido e pessoas bem preparadas e bem motivadas para ensinar esse currículo sólido.

Carlos Ceia justifica o porquê do cenário que prevê nos próximos exames nacionais, nomeando fatores como: aquilo que se vê nas escolas, os resultados locais das diferentes escolas e a dificuldade enorme dos professores em trabalhar com o atual sistema de avaliação e com o atual currículo nacional. Por tudo isto, afirma que os resultados que se obtêm não são reais, mas obtidos através de um artificialismo introduzido no sistema. Portanto, «isto nunca pode dar certo». 

Nós trabalhamos muito para resultados que não são reais. Que são, muitas vezes, obtidos através de um artificialismo que foi introduzido no sistema, com um sistema de avaliação das aprendizagens que é… nós vemos este paradoxo neste momento: temos um currículo baseado em essencialidades – que são as aprendizagens essenciais; e temos um sistema de avaliação dessas aprendizagens que é talvez o mais complexo que há no mundo. Isto nunca pode dar certo.

Na altura da construção das aprendizagens essenciais, na qual participou Carlos Ceia, o objetivo não era transformar as aprendizagens essenciais num currículo nacional. O espírito era dar alguma legibilidade ao currículo, para pais, alunos e professores. Simplificar e que houvesse margem de flexibilidade para que as escolas pudessem completar o currículo nacional. Mas, uma ação do governo abandonou por completo a matriz integral do currículo, diz. 

Simplificar. Haver uma versão mais simples do currículo, que todos pudessem ler e compreender e saber exatamente o que é que eram capazes de aprender naquele currículo em especial, daquela disciplina em especial. Todos os países têm, o que se chama lá fora o core curriculum, toda a gente tem e nós não tínhamos, tudo bem, achei que era uma boa ideia e, sobretudo, naquela altura, fazia sentido depois que houvesse uma margem do currículo nacional, pudesse ser flexibilizada, para que as escolas pudessem depois completar o currículo nacional. Correu tudo bem até ao dia em que o atual governo decidiu que o currículo essencial se transformava em currículo único e em currículo principal, abandonando por completo a matriz integral do currículo.

 

«Acabamos por tratar o professor como um indivíduo que se limita a preencher»

As aprendizagens parecem, por isso, reduzidas às essenciais, mas os professores, entretanto, estão absolutamente ocupados em tabelas, papéis e grelhas de excel. Registos. Ou seja, a preocupação recai sobre avaliação de domínios e competências. 

A razão para este cenário, afirma Carlos Ceia, reside na formação aos professores que esteve «toda errada»: 

A formação que foi dada aos professores para trabalharem com essas aprendizagens essenciais esteve toda errada. Até porque, há aqui um princípio que é simples: não se dá formação a professores para ensinar o essencial de um currículo, senão não vale a pena ser professor. Se um professor não sabe o essencial de um currículo, então não está preparado. Tem de se ensinar sempre mais um professor para ele depois dar a devida adaptação àquilo que tem de ensinar. E não foi por aí que nós fomos. Fomos por onde? Carregamos os professores de não sei quantas formações para aprenderem a utilizar a avaliação por domínios e competências, que é uma coisa de bradar aos céus aquilo que se implementou nas nossas escolas.

O caminho da educação tem ido por esta estrada de avaliações, grelhas e resultados. Será um caminho sem retorno? 

Tínhamos de conseguir voltar a uma avaliação simples, como tínhamos. E tínhamos de voltar a um tempo em tínhamos de confiar mais no professor, e menos no excel. Confiar mais na cabeça do professor. Porque acabamos por tratar o professor como um indivíduo que se limita a preencher. É um observador de aulas, não chega a ser professor. É um observador de aulas que vai registando a estatística da aula, que é ao que esta avaliação se reduz: é para avaliar a estatística da aula. […] . Eu tenho pena dos nossos colegas do ensino básico e secundário, quando vejo aquelas grelhas impossíveis, com que eles têm de trabalhar e quando eles têm de perder grande parte do seu tempo útil profissional a preparar aquelas grelhas. 

O paradigma de ensino mudou completamente. As escolas estão cada vez mais multiculturais, multirraciais, multiétnicas. E, defende Carlos Ceia, devíamos preparar os professores para lidarem com esta mudança, com alunos com diferentes ritmos de aprendizagens e diferentes referências educativas. Mas, em vez de fazermos isso, ensina-se o professor a pôr a cruz numa grelha. 

Em vez de adaptarmos o currículo a essa nova realidade que temos nas nossas escolas, em vez de darmos formação para que um professor saiba, hoje, um pouco melhor como é que deve trabalhar com alunos com diferentes ritmos de aprendizagem no mesmo espaço, com diferentes culturas no mesmo espaço, com diferentes referências educativas no mesmo espaço. Em vez de prepararmos um professor para trabalhar com essa multiplicidade que está à nossa frente, o professor está preocupado em saber onde vai pôr a cruz na grelha.

 

Neste contexto, é preciso formar professores. Formá-los de acordo com o que é a educação nos dias que correm e não reduzir a formação a um currículo único. E, ou é isso, ou «a nossa escola pública vai rebentar». 

O que eu lhe digo neste momento é que não vamos precisar de formar 35 mil professores até 2030, vamos precisar do dobro. Porquê? Nós, neste momento, temos uma capacidade de formar professores à volta dos mil e seiscentos professores por ano. É a nossa capacidade. Como não há reforço de financiamento no Ensino Superior, eu não posso aumentar as vagas, que precisava de aumentar, para poder ter mais professores. Não posso. Não tenho recursos humanos para isso. Nem na minha universidade, nem em nenhuma universidade, porque não há reforço e verba para isso. Portanto, não sendo nós capazes de formar os três mil e quinhentos, quatro mil professores que precisaríamos de formar anualmente até 2030, vamos precisar de pelo menos 70 mil novos professores até 2030. A nossa escola pública vai rebentar

Tecnologia, deslocação, salário e vocação

Neste cenário, arriscámo-nos, até 2030 - ou muito para lá disso -, a continuar a ter turmas sem professores. Também não deveríamos estar a procurar soluções rápidas, como – dentro daquilo que consideramos como pedagogia – introduzir mais tecnologia? 

A tecnologia vai-nos ajudar e está a ajudar-nos de múltiplas formas e todos nós professores, seja no ensino básico e secundário, seja na universidade, seja no ensino superior, podemos beneficiar e já beneficiamos da introdução à tecnologia no nosso sistema de ensino. […] O nosso trabalho, fica mais facilitado? Fica. Obviamente que fica.

Mas, o caminho não pode ser apenas por aí, acredita Carlos Ceia. Temos de recuar e perceber como tornar esta profissão atrativa para os jovens e, nesta equação estão presentes três variáveis: deslocação, salário e vocação: 

Há duas ou três coisas que podiam ser feitas. Eu falo com os meus alunos finalistas sempre. Pergunto-lhes quem é que quer ser professor, quem é que não quer e interessa mais aqueles que não querem e pergunto-lhes porquê e tem sempre a ver com isto: em primeiro lugar, segurança, instabilidade, não sabem onde vão ficar colocados, não querem arriscar ficarem a muitos quilómetros de distância da sua residência. Portanto, a deslocação, o local onde vão ficar a trabalhar é importante para esses jovens que podiam pensar na carreira de professores, mas não querem arriscar; o segundo aspeto é o salário, sabem que o salário base é muito baixo e que é possível ganhar muito mais, em qualquer outra coisa. O salário é também importante para eles. Depois, em terceiro lugar – devia ser o primeiro -, a vocação. Com toda a publicidade negativa que há em volta da escola pública em particular, isso não contribui para que os jovens e os pais dos jovens fiquem muito motivados para concluir que esse caminho é valido, que é possível e que vale a pena. 

Por tudo isto, é precisa uma reforma estrutural que coloque tudo em ordem, remata o professor Carlos:

o nosso sistema de ensino é uma soma de problemas que estão todos interligados e não há meio de termos um governo que seja capaz de pensar o Ensino a 10 anos e fazer uma reforma estrutural em que ponha tudo isto em ordem: a avaliação, o currículo, incluindo os salários também, a carreira, a formação de professores, os grupos de recrutamento, tudo. 

Assista ao episódio, na íntegra, no YouTube, Spotify, iTunes ou Google Podcasts.

 

 

Adriana Ribeiro

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